sexta-feira, outubro 21, 2005

Leito

Mesmo deitado nessa cama estreita vejo a tinta velha que escorreu até o primeiro azulejo. Nem é preciso me levantar para notar o desleixo na pintura, a camada de poeira que se acumula no desnível da parede. O estrado de metal range ao mísero movimento meu, acompanhando minha respiração ofegante. Esse cheiro de urina e comida barata que entra às lufadas e me sufoca as narinas.

De onde vem essa luminosidade toda, que ainda assim me deixa na penumbra da tarde vazia, eu encostado na parede fria e mal pintada? Grosseiramente pintada, isso me incomoda tanto. E essas pessoas que trajam jalecos azuis rotos e esmaecidos pelo sabão vagabundo. Cismam em me olhar, como se eu fosse um louco. Ora, loucos são os donos dessas gargantas que rasgam impropérios no ar quente deste salão.

sábado, outubro 15, 2005

Canteiros

Quando penso em você fecho os olhos de saudade
Tenho tido muita coisa, menos a felicidade
Correm os meus dedos longos em versos tristes que
invento
Nem aquilo a que me entrego já me traz contentamento.

Pode ser até amanhã, cedo claro feito dia
mas nada do que me dizem me faz sentir alegria
Eu só queria ter no mato um gosto de framboesa
Para correr entre os canteiros e esconder minha tristeza.

Que eu ainda sou bem moço para tanta tristeza
E deixemos de coisa, cuidemos da vida,
Pois se não chega a morte ou coisa parecida
E nos arrasta moço, sem ter visto a vida.


Depois de burro velho é que me dei conta que Fagner canta ipsis litteris o poema da Cecília Meireles.

sábado, outubro 01, 2005

Saxofone

É um homem dividido, este.

Novamente, ainda ou finalmente, não saberia dizer.

Sei apenas que é um parto descobrir-se, mas isso todos sabem. O que nem todo mundo sabe é que não preciso dos óculos nesse momento. E abandono também a razão, pois não é dela que saem estas linhas.

E então, estou no barco, interrompendo o rastro silencioso que o luar trilha na água escura desta noite eterna. Balanço junto com as pequenas ondas que lambem seu casco branco, flutuando a nau, eu e os meus sonhos.

Da proa os meus olhos que, por milagre, não são mais míopes, vêem as estrelas cravejarem o céu negro. Atrás de mim está a praia, a uns dois ou três quilômetros. Tenho em mãos um saxofone que reflete a luz amarela que vem lá de baixo, de dentro do barco.

O silêncio parece falar comigo, neste momento que é um dos mais importantes da minha vida, e é por isso que converso com o céu, através do sax que verte melodia que volatiza-se no vento úmido dessa noite de primavera.

Quase posso ouvir resposta e sorrio. Pressinto algo. Levanto os olhos para o zênite e as estrelas piscam, cúmplices.

- Seria mais fácil se vocês falassem - digo em voz alta.
- Mas nós falamos - responde uma voz atrás de mim.

Giro sobre meus calcanhares para certificar-me de minha sanidade, mas não saberia explicar o que vejo, pois o corpo dele parece ter luz própria. Mais baixo do que eu, é grandioso em presença. É desproporcional: sua cabeça destoa do resto de seu corpo, assim como suas mãos as quais ele estende para pegar o saxofone.

O pequeno orifício no lugar da boca parece incapaz de soprá-lo, mas quando o faz, o mar pára. Não há mais marola ou balanço, nem o vento revolve meus cabelos. Somente música.

A melodia descreve toda a trajetória do universo. Em cada nota o surgimento de uma civilização diferente, com seus sóis e luas. A criação da vida, aqui e fora daqui. Na beleza daqueles sons, a profecia de um futuro melhor.

Mentalmente pergunto a mim mesmo o por quê de todo este processo e, imediatamente, a música termina. Ele me entrega o saxofone e sorri como quem sorri para uma criança. Segura minha mão e eu já não tenho mais peso.

Lá embaixo está o barco com o sax no chão de madeira. Posso ver a costa à minha direita, enquanto o luar continua a banhar-nos a frente.

Até que eu finalmente já não faço mais parte daqui.

E no instante seguinte estou no interior do barco e posso escutar a música que toco na proa. O saxofone tem um som realmente bonito.

Mas a música pára, abrupta. Ouço uma voz tão bela quanto o som que sai do saxofone instantes depois. Sinto como se estivesse dormente, um momento transcendente que dura pouco, mas que é um regozijo à alma.

Caminho para a escada, de onde posso ver a mim e a um ser luminoso. Não o conheço, mas o admiro. Reconheço minha voz saindo daquele sujeito pasmo que sou eu. O ser estende a mão e os dois flutuam. Corro para fora e, ao olhar para cima, já não sou mais eu.

Só que, então, como preso dentro de um vinil arranhado, estou novamente no barco. Objetos de não-amor cobrem a mesa suja. Entre ela e a cama desarrumada há um lixo com pontas de cigarro.

Um som agudo e estridente machuca-me os ouvidos. Sou eu tentando tirar algumas notas do saxofone. A clarabóia opaca pela poeira me impede de ver o céu no qual se forma uma tempestade. Subo as escadas que rangem ao contato com meus passos. Paro e vejo que não mais toco o instrumento. Estou falando sozinho, pois não há ninguém na proa comigo. Estendo o saxofone para o nada e ele cai, baque surdo no chão de madeira que em breve a chuva vai encharcar.

Volto para dentro do barco e volto a me deitar. Há muito que não tenho uma boa noite de sono e eu pelo jeito não será hoje que a terei.