segunda-feira, agosto 29, 2005

Bar da rampa

À beira do pier que avança por cima da baía de Guanabara, observo o pequeno gato preto acompanhar atento aos movimentos do pescador neste quase frio final de sexta-feira. Ao contrário do felino, o homem não tem pressa, embora ambos, às suas maneiras, sejam persistentes.

Bem ao longe, à minha esquerda, os carros contornam a praia de Botafogo até sumirem no Aterro do Flamengo. Mais distantes, projetam-se os prédios da orla de Icaraí, enquanto que, no meio disso, de tempos em tempos, um avião arremete-se vertical, ultrapassando as rochas do Pão de Açúcar, que completam meu horizonte, à direita.

Os barcos, botes e lanchas vagueiam serenos no espelho d'água onde o pescador mergulha sua isca, acalentados pelo calmo som das marolas contra os cascos brancos. Não há urgência. Arrisco dizer que se há tempo, é tão somente para permitir que o sol possa deitar-se por trás do Corcovado que abençoa essa cena.

Vejo então a vara de pescar vergar em curtas fisgadas. O gato pressente o lanche iminente no mesmo momento em que eu redescubro a paz.

segunda-feira, agosto 22, 2005

Imensa e amarela

Da varanda vejo que a lua nova da sexta à noite começa a minguar.

Espera-se que se esvazie até espremer-se num filete curvo na abóboda negra e então que volte a crescer até despontar redonda na curva do mar de Copacabana.

Quantas vezes mais vou assistir a essa dança? E se eu soubesse que não assistiria a esse pulsar novamente? De que não haveria outra lua cheia pra mim?

Jogarei boliche mais uma vez? Vou provar mais um cálice de vinho do Porto? Assistirei ao próximo filme de Woody Allen? Ou talvez seja melhor acabar com a despensa antes de voltar ao supermercado... Qual dos livros empilhados no criado-mudo eu devo ler? Aliás, faz alguma diferença? Para quais das pessoas que amo não conseguirei dizer mais uma palavra doce? Ouvirei um tango? Aprenderei a dançar um?

Pergunta flutua: do tempo que me resta, qual o tempo que viverei?

terça-feira, agosto 09, 2005

Riders on the Storm

Não se fie pelo título, pois fazia sol. Um belíssimo céu azul de brigadeiro surpreendia aquela remota manhã de terça-feira enquanto dentro do carro chovia The Doors.

Eu não sabia, mas nos meses seguintes um vendaval varreria todas as minhas certezas. Agora escuto novamente o CD e percebo que não haveria melhor trilha sonora para aqueles dias. Soa profético.

Não ser capaz de prever o futuro é uma dádiva, pois dependendo a qual trecho desse filme assistamos, podemos recuar ou saltar.

Mas, pensando bem, e daí? A gente sobrevive de qualquer forma.

segunda-feira, agosto 08, 2005

Aqui em cima

É uma miríade de antenas que avisto neste final de domingo sobre os telhados de Copacabana. Mas nem de perto conseguem arranhar a magnificência do Morro dos Cabritos. Incólume, contrasta com o céu azul-arroxeado que o por-do-sol por trás dele vai pintando.

Ergue-se como pedra e mata imponentes neste mar de prédios. E ali, escalando sua encosta, vejo o condomínio onde moro, com suas janelas verdes e suas paredes amarelas.

Mais à esquerda, descoberto pelo Corte de Cantagalo e ligeiramente ofuscado pelo Gemini, posso admirar os Dois Irmãos ao fundo.

Então eu já não sei mais se o que tenho em meus olhos é a maresia que chega da praia, às minhas costas, ou se são lágrimas.

Fisioterapia

Me sinto com 21 anos, mas meus joelhos não.

terça-feira, agosto 02, 2005

Tiberíades

Quando acordei o sol já ia alto no céu da Galiléia, refletindo-se no espelho d'água à minha frente. Tinha ainda em minha mão a flauta, e sem soltá-la, apoiei-me na pedra para me sentar. Minhas costas doíam, e percebi que havia dormido uma noite inteira naquele local. Imediatamente me lembrei da tua presença no fim da tarde do dia anterior e te procurei, levantando-me.
- Estou aqui, filho. - disse você, alguns passos atrás de mim, em pé, ainda com as vestes de ontem. - Parece que passamos a noite ao relento.
Ainda aturdido, concordei, mudo.
- Tive um sonho estranho, pai. - comecei, ainda sem saber ao certo o que sonhara.
Você buscou os meus olhos e meneou a cabeça.
- Eu também. - você respondeu.
Desviei seu olhar, e pus-me a continuar:
- Sonhei que vivíamos há muitos estádios daqui, num tempo que ainda está por vir. Vestíamos tecidos diferentes do que estamos usando e falávamos uma língua esquisita, embora compreendêssemos tudo.
Você continuava ouvindo, e seu semblante demonstrava espanto. Eu prossegui:
- Foi um sonho tão complexo e tão extenso, que pareço ter dormido meses. Em que dia estamos?
Você arqueou as sombrancelhas, protegeu os olhos do sol, olhou por sobre meu ombro e concluiu:
- Não sei, mas o barco de Pedro está no mesmo lugar de ontem e sua túnica ainda permanece no varal.
Me virei e deslumbrei-me com a vista. O Tiberíades imponente e as várias casas próximas a sua beira. Algumas crianças corriam próximas a uma delas, assim como eu havia feito alguns anos antes. Levantei os olhos e pude apreciar a revoada de pássaros até pousarem novamente na copa de uma das inúmeras árvores à nossa volta.
Enfim, me voltei mais uma vez para você. O sonho já estava cristalizado em minha memória. Mas, antes, perguntei:
- Como foi o seu sonho?
Você suspirou por um momento, enquanto eu me aproximava e, apenas quando começamos a caminhar lentamente de volta para casa, você falou:
- Meu sonho se passa no mesmo lugar, embora, no início, você não estivesse comigo. Aliás, ele começa alguns anos antes do seu.
- E fostes meu pai, assim como eu sonhei?
- Hum, hum. - você concordou.
- E nos amávamos como hoje nos amamos?
- Exatamente. - você disse. E começou: - Ainda que...
- Ainda que no fim do sonho estivéssemos afastados em corpo. - eu completei.
- É isso.
- Ainda bem que acordamos. - eu disse, confidenciando-lhe logo depois: - Não estava gostando do rumo que nossas vidas tomavam no sonho.
- Por isso acordamos. - você retrucou. - Porque nenhum pesadelo pode se tornar tão ruim a ponto de não podermos acordar dele.
Coloquei meu braço por sobre teu ombro enquanto continuávamos andando. E ficamos assim, calados, boa parte do resto do percurso. Depois, comecei a tocar a flauta, para espantar o sonho estranho para o outro lado da Palestina.
E quando olhei pra você, pude ver o sorriso em tua face queimada pelo sol.
Estávamos nos aproximando de casa, e já podíamos escutar as vozes das mulheres na cozinha. Antes de descermos o pequeno barranco de terra, parei de soprar a melodia, segurei o teu braço, olhei no fundo da tua grande alma e disse:
- Eu te amo.